Elize massard da fonseca e daniel wei liang wang: atraso em vacinação no brasil não é apenas culpa de bolsonaro

feature-image

Play all audios:

Loading...

[RESUMO] Embora Bolsonaro tenha atitudes repreensíveis, conduza ações erráticas e dissemine desinformação sobre a pandemia, atribuir a ele e a seu governo todos os entraves da vacinação no


Brasil é subestimar os desafios impostos pela Covid-19 e os problemas estruturais do país, defendem autores. A prioridade neste momento, avaliam, é pensar uma agenda ampla de fomento à


inovação e de investimento em ciência e tecnologia.  A política de vacinação contra a Covid-19 do governo federal tem recebido severas críticas. Pesquisas acadêmicas, artigos de opinião,


pedidos de impeachment e representações criminais contra o presidente Jair Bolsonaro apontam o atraso na imunização como resultado de uma conduta intencional e criminosa, que contribuiu para


o colapso do sistema de saúde. De fato, as ações do presidente a respeito da vacinação têm sido marcadas pela desinformação como estratégia política. Ele desqualificou algumas vacinas,


disseminou informações falsas sobre os efeitos colaterais e estimulou a hesitação vacinal, um problema até então praticamente inexistente no Brasil. No entanto, as análises que sugerem que


Bolsonaro seja o único ou a principal causa da baixa taxa de vacinação no Brasil subestimam os desafios impostos pela Covid-19 e superestimam o que um governo, ainda que menos ruim que o


atual, poderia ter realizado. A ideia de que a campanha de imunização no Brasil está atrasada precisa ser colocada em perspectiva. Somente quatro países (EUA, China, Índia e Reino Unido)


aplicaram mais doses de vacina que o Brasil. Dentre os países com mais de 100 milhões de habitantes, apenas os EUA têm um percentual maior da população imunizada. Assim que a vacinação teve


início, em 17 de janeiro, o Brasil alcançou (e superou) rapidamente outros países de renda média e perfil demográfico semelhante, como México, Indonésia, Rússia e Índia. A comparação com


nações de renda alta e população pequena também deve ser feita com cautela. Se o Brasil tivesse a população de Chile e Israel, duas referências de sucesso na política de imunização,


teríamos, respectivamente, 70% e mais de 100% dos brasileiros vacinados com o número de doses já aplicadas aqui. Um dos principais desafios para o acesso mais amplo e rápido à vacina é a


capacidade de produção das indústrias farmacêuticas. Há uma demanda global, e países de renda média, como o Brasil, estão em desvantagem por não terem os mesmos recursos para fazer reserva


de mercado e não serem elegíveis para receber doações, como os países de renda baixa. Restam ao Brasil e semelhantes as iniciativas de colaboração internacional, como a Covax Facility, da


OMS, acordos com empresas estrangeiras para transferência de tecnologia, compras diretas com desenvolvedores de vacinas ou, ainda, a produção de tecnologia própria. A adesão do Brasil à


Covax Facility por meio de medida provisória em setembro de 2020, ainda que importante, apresenta uma série de limitações. Primeiro, a distribuição das vacinas é proporcional à população dos


países e não considera critérios epidemiológicos ou risco de morte. Além disso, falta transparência nos contratos e há um grande atraso nas entregas. Pela Covax, o Brasil receberá 9 milhões


de doses até maio de 2021, número longe de ser desprezível, mas que mostra a insuficiência dessa iniciativa. Quase todos os países de renda alta e média fizeram acordos diretos com os


desenvolvedores de vacinas. EUA, Japão e Reino Unido negociaram entre maio e junho de 2020, seguidos pela União Europeia em agosto, mesma época em que Brasil, Cazaquistão, Índia e Vietnã


contrataram a compra. Nesses acordos, países pagaram adiantado por vacinas que ainda estão sendo testadas, assumindo o risco de perderem seus investimentos caso os produtos não se mostrassem


seguros e eficazes ao final dos estudos. Até novembro de 2020, os campeões de diversificação da compra de vacinas eram Reino Unido, Estados Unidos, União Europeia e Canadá, que fecharam


acordos com mais de quatro fornecedores. Eles aplicaram pelo menos uma dose da vacina, até o momento, em 41,7%, 25,1%, 9,5% e 9,5% de sua população, respectivamente. Rússia e Índia, países


desenvolvedores e exportadores de vacina, vacinaram 3,9% e 3,1%, enquanto o Brasil, 5,4% da população (dados de 23 de março do Our World in Data). A capacidade de diversificar e assumir


riscos depende do poder econômico. Por exemplo, os EUA criaram um programa, Operation Warp Speed, com um orçamento de US$ 18 bilhões exclusivamente para investimento em vacina. Isso equivale


a dois terços de todo o orçamento executado pelo Ministério da Saúde no Brasil em 2020. É também preciso atentar para o fato de que a compra antecipada não garante a efetiva entrega da


vacina, como mostra o caso da União Europeia. Embora com diversos contratos firmados, o grupo tem tido seu ritmo de vacinação freado pela demora na entrega e pela aposta em vacinas que


passaram por problemas em suas pesquisas clínicas. A produção local, por meio de acordos de transferência de tecnologia, deveria ser a principal estratégia para garantir acesso às vacinas em


países de renda média, já que permite aumentar a escala de produção em um momento de alta demanda global. Nesse aspecto, o Brasil estava bem posicionado: Butantan e Fiocruz fornecem 75% das


vacinas do Programa Nacional de Imunizações e participaram, na última década, de diversos acordos de transferência de tecnologia patrocinados pelo Ministério da Saúde. O fato de o governo


federal ter feito apenas o acordo de transferência de tecnologia com a AstraZeneca decorre de uma cláusula de exclusividade no contrato com a empresa, que criava impedimentos legais para a


celebração de contratos semelhantes com outros fabricantes. Por isso, o acordo de transferência de tecnologia entre o Butantan e a Sinovac (a fabricante da Coronavac) só foi possível por ser


iniciativa do governo de São Paulo. Se hoje parece evidente que o governo federal deveria ter aceitado a oferta da Pfizer de agosto de 2020, isso não era tão óbvio à época. Na ocasião,


apenas Estados Unidos, Canadá e Japão firmaram acordos de compra com a empresa. Cabe notar que a vacina da Pfizer usava uma tecnologia inédita (mRNA) e, portanto, cercada de incertezas sobre


o sucesso nos ensaios clínicos. A Pfizer não autorizou a transferência de tecnologia, centralizando a produção em poucos países. Havia, naquele momento, grande dúvida sobre quais vacinas


seriam bem-sucedidas nos ensaios clínicos, e a da Pfizer tem características que dificultam a sua distribuição em um país como o Brasil. Além disso, a fabricante foi duramente criticada


pelas cláusulas de responsabilização, consideradas abusivas. Dessa forma, a transferência de tecnologia da vacina Oxford/AstraZeneca se mostrou a melhor opção de acordo com técnicos do


governo federal, incluindo especialistas do Ipea, da Fiocruz e do PNI. A percepção de que o obstáculo para o acesso à vacina no Brasil é apenas a incompetência ou o dolo de alguns acaba


dando apoio a medidas para diminuir o rigor do controle regulatório pela Anvisa e a propostas de compras paralelas por governos subnacionais ou grupos privados. Reduzir ou suprimir o papel


da Anvisa pode levar à distribuição de vacina com eficácia reduzida ou mesmo que cause dano à saúde. Isso diminuiria a confiança e a adesão da população à campanha de vacinação. Compras


paralelas, por sua vez, deveriam ser a última alternativa. A fragmentação pode levar a uma distribuição menos equitativa de imunizantes e a uma posição de desvantagem do governo brasileiro


na mesa de negociações —a compra centralizada para suprir as necessidades do SUS nacionalmente garante poder de barganha maior. O plano das clínicas privadas de adquirir a Covaxin na Índia


ilustra bem o problema. A Covaxin é uma das vacinas que não apresentaram informações transparentes a respeito de ensaios clínicos e tampouco tem registro ou autorização na Anvisa. Fora isso,


o preço anunciado de sua dose para a compra privada foi de US$ 44, enquanto a vacina da Pfizer certamente terá um valor inferior a US$ 20. Questiona-se, também, por que o Brasil não


desenvolveu sua própria vacina, apesar de sua capacidade de produção local. Parte da resposta vem da falta de política e investimentos públicos. Todas as vacinas contra a Covid-19 aprovadas


até hoje contaram com enormes aportes de recursos governamentais para o desenvolvimento e a produção. Talvez seja a hora de o Brasil voltar a pensar em uma política de fomento à inovação e


de priorização do investimento em ciência e tecnologia em saúde, área em que já possui diversas vantagens comparativas. A pandemia tem mostrado que esse é um investimento que salva vidas, dá


ao país projeção e influência global e é também rentável. Nada neste texto nega ou diminui os erros cometidos pelo governo federal e as condutas repreensíveis do presidente. Todavia, levar


em consideração somente as atitudes ou falas de indivíduos, sem entender nossos limites estruturais e o contexto global, acaba nos eximindo, como nação, de enfrentar a complexidade do


desafio atual e de pensar uma agenda ampla capaz de articular as políticas externas, de saúde, industrial e de inovação para superar essa e futuras crises.