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«A televisão é um instrumento permanente do ‘divertissement’.(…) é uma cultura do esquecimento e uma criação do esquecimento sobre o esquecimento». Eduardo Lourenço
A cultura da ignorância, presente nas sociedades contemporâneas, europeias e ocidentais, prisioneiras do ‘achismo’ e do generalismo, da mediocridade, do voyeurismo e do exibicionismo
primários, está a alimentar aquilo a que poderemos chamar de ‘utopia das pequenas e simples coisas’.
Utopia essa provocada pela tal ‘cultura da ignorância’ que grassa em várias áreas da sociedade, de diferentes condições económicas e sociais.
Mas não nos iludamos. A cultura da ignorância já leva tal vantagem – e tem provocado (e provoca todos os dias) tantos bloqueamentos nas nossas sociedades contemporâneas – que vamos pagar um
preço muito alto pelas desestruturações sociais e culturais que ela tem vindo paulatinamente a provocar. Além de ter produzido muitos dependentes da sua triste existência.
E não é despiciendo referir que é profusamente alimentada e defendida, diretamente e indiretamente, por muitos dos velhos e sobretudo novos media.
O novo mundo vive, alimenta-se, de muitos destes contrários. Sobretudo à conta de uma postura de desvalorização das pequenas coisas da vida.
Para muitos, a vida só é vida se estiver exposta nas redes sociais, nas aplicações do universo da internet, na ditadura da imagem, na ampliação do que é imediato, partilhado em direto. Na
supremacia do prazer pelo prazer enquanto valor de vida.
Para os cultores desse mundo novo, carregado de bloqueamentos, estrangulamentos e nós górdios, o que conta é o ‘imediatismo’, o ‘estar em direto’, o ter animus mediático. O ter eco, presença
mediática. O ‘aparecer’. Sobretudo se estiver no circuito do aparecimento diário, alimentado pela narrativa obsessiva de que o que conta é partilhar espaço e tempo no mundo da internet e do
audiovisual.
Poder-se-á perguntar: afinal o que é ser ignorante nos tempos atuais? É não ser muita coisa que se devia ser. E ser outra coisa que não se devia. Mas é sobretudo ser destituído de um
conjunto de valores de vida que atendem à vivência individual e coletiva – em que se desvalorizam cada vez mais as humanidades, esmagadas pela ortodoxia dos números. Desvalorização das
humanidades e dos valores de vida do mundo clássico. Desconhecimento das artes, da cultura, da história, etc.
Exemplos não faltam. Das coisas maiores às menores – ou, melhor dizendo, normais. Com a desvalorização do estudo, da profundidade dos saberes, em favor da opinião com recurso ao Google, à
net. Com a desvalorização do livro, do estudo aturado das matérias, da profundidade da sua comparação. Com a desvalorização da memória. Com a desvalorização do rigor científico em favor do
‘achismo’ suportado por meia dúzia de minutos de pesquisa online e cinco dedos de conversa com um conhecido de conveniência.
A sociedade em que vivemos julga-se muito superior e culta, mas em muitos domínios está capturada pela ignorância. Pela ditadura do imediatismo, pela dependência do generalismo.
Infelizmente temos uma sociedade que, em muitos domínios, vive obcecada pelos números e pela imagem – e paralisada pelo que é mais material do que espiritual. Isto não são críticas – são
constatações. Do que são os tempos em que vivemos. De uma sociedade que não respeita o silêncio e valoriza o ruído. Em que o caráter e a coerência vacilam cada vez mais perante o
chico-espertismo e a mentira.
Uma sociedade que não quer ter nada a ver com a memória. Sobretudo com a memória que lhe traga a vergonha de perceber que os ‘saberes’ são ‘pequeninos saberes’. E que tais ‘saberes’ são o
contrário da genética da nossa identidade, baseada no humanismo, na herança judaico-cristã, na dignidade da pessoa humana.
O pior de tudo é que os protagonistas da cultura da ignorância são hoje piores ou mais ignorantes do que os bárbaros dos idos tempos de Roma, em termos comparativos.