[coluna] mestiçagem nunca foi garantia de igualdade

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Pesquisa da USP sobre DNA brasileiro corrobora aquilo que já sabíamos há tempos: a história da mestiçagem no Brasil começa, em grande parte, com a violência sexual e física contra mulheres


africanas e indígenas.Há alguns dias, uma pesquisa liderada pela geneticista Lygia da Veiga Pereira, da Universidade de São Paulo, foi publicada na revista Science, trazendo informações


importantes sobre a população brasileira. Um dos dados mais interessantes, é que o Brasil tem a maior diversidade genética do mundo, dado comprovado por meio do exame do genoma completo de


mais de 2,7 mil brasileiros em todas as regiões do país, que revelou mais de 8,7 milhões de variantes genéticas inéditas. O estudo integra o programa Genomas Brasil, uma iniciativa do


Ministério da Saúde que busca sequenciar o DNA de 100 mil brasileiros. O maior objetivo dessa iniciativa é impulsionar a medicina de precisão no país. Como foi publicizado em inúmeras


reportagens, a identificação de milhões de variantes genéticas únicas possibilita que Brasil se destaque no cenário científico internacional, ao mesmo tempo em que ganha novas ferramentas


para enfrentar desafios de saúde pública. Em tese, essas descobertas têm o potencial de revolucionar o diagnóstico e o tratamento de doenças no Brasil, ao permitir terapias mais


personalizadas e eficazes, bem como a formulação de políticas públicas na área da saúde direcionadas para a prevenção e tratamento dessas doenças. Uma dimensão especialmente importante, na


medida em que a mesma pesquisa encontrou mais de 36 mil variantes raras e potencialmente prejudiciais, muitas delas concentradas em indivíduos com ancestralidade africana e indígena – que


historicamente são as pessoas que mais precisam e utilizam o Sistema Único de Saúde. Se, por um lado, os dados expostos reforçam que essa pesquisa pode ter enorme relevância para a saúde


pública brasileira, por outro lado, algumas interpretações da nossa imensa mestiçagem podem ser perigosas. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a mestiçagem brasileira não é nenhuma


novidade. Desde meados do século 19, quando o Império do Brasil promoveu uma série de ações para contar (e em alguma medida criar) a história oficial do país, os intelectuais que estiveram à


frente desse processo tiveram que lidar com a amplo gradiente da mestiçagem nacional. Um desafio imenso para os intelectuais brancos brasileiros que, formatados pela ideologia do racismo


científico, não podiam esconder que o Brasil era um país mestiço, ao mesmo tempo em que identificavam essa mestiçagem como sinônimo do atraso e da incivilidade do Brasil daquela época. Entre


as décadas de 1890 e 1930, políticas públicas foram desenhadas e executadas a partir dessa percepção. Uma das mais vigorosas tinha como objetivo embranquecer a população brasileira por meio


da imigração europeia subvencionada pelo Estado nacional. A mestiçagem era o caminho obrigatório para que, no intervalo de 100 anos, o Brasil finalmente extirpasse toda sua população negra,


e tivesse o menor contingente possível de mestiços. A partir da década de 1930, a história mudou um pouco. A mestiçagem, que era uma espécie de mal necessário para se chegar ao caminho da


raça pura, passou a ser celebrada como uma característica genuinamente brasileira por grande parte dos intelectuais e dirigentes do país – que seguiam sendo homens brancos, em sua imensa


maioria. O livro que serviu como uma espécie de bíblia desse momento da nossa história foi Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, publicado em 1933. Ali, em tese, havia uma explicação


história e lógica sobre como e por que nos transformamos num país multirracial que, ao contrário do que acontecia nos Estados Unidos, não tinha segregação racial. Uma grande e bem acabada


mentira, que serviu para pavimentar a reconfiguração do mito de que somos um país sem racismo, afinal de contas, como um país racista poderia ter uma população tão miscigenada? Aliada às


políticas da era Vargas (1930-1945) e da ditadura militar (1964-1985), o mito da democracia racial foi sendo talhado para se tornar a maior e mais pura verdade sobre o Brasil: um país


incontestavelmente miscigenado, que viveria em plena harmonia racial. Uma harmonia que fechava os olhos para os baixos índices de escolarização da população negra e mestiça. Uma harmonia que


se calava frente à violência dos aparelhos de repressão do Estado contra essa mesma gente miscigenada. Uma harmonia que culpava esses mestiços pela sua pobreza, dizendo em alto e bom som


que eles não haviam se esforçado o suficiente, trabalhado o suficiente. Durante a maior parte da nossa experiência republicana, a mestiçagem brasileira foi instrumentalizada para manter as


desigualdades sociais, econômicas e políticas, maquiando nosso racismo, que sempre preferiu um mestiço de cabelo alisado. Um dos maiores ganhos da pesquisa feita pelos cientistas da USP é


corroborar aquilo que historiadores e historiadoras sabem há tanto tempo: a história da mestiçagem no Brasil é, em grande parte, uma história que começa com a violência sexual e física


contra mulheres africanas e indígenas. Isso porque um aspecto marcante do estudo está nos padrões de herança genética revelados. Enquanto a maioria dos cromossomos Y — herdados por via


paterna — são de origem europeia, o DNA mitocondrial — transmitido pelas mães — é predominantemente africano e indígena. Essa assimetria genética reflete a estrutura violenta da colonização


brasileira, marcada por relações desiguais e hierarquizadas entre homens europeus e mulheres indígenas ou africanas. Estudar o genoma brasileiro é também um convite para revermos nossa


história e os caminhos escolhidos que fizeram com que a miscigenação do Brasil escondesse boa parte das desigualdades que nos constituem. __________________________________ Mestre e doutora


em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec


2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da


formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe. O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW. Autor: Ynaê


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