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Tal como neste início de novembro, as tempestades assolaram o país. Por toda a parte uma atafona de gente que nunca sabe ao certo o que fazer quando lhe falta o sol. Ventos ciclónicos,
copiosas chuvadas. Ah! Maldito Inverno que caminhava a passos de sete léguas em direção a todos os pontos deste retângulo espapaçado na areia atlântica e na poeira do tempo. Mas, vendo bem,
o importante era o macaco. O macaco é que baralhava as notícias do dia. Já lá vamos… Já lá vamos… Árvores derrubadas, chaminés em ruínas. Por mais que os portugueses saibam que,
inevitavelmente, vento e chuva hão de surgir, nunca estão preparados para eles. É endémico, francamente! Já não há grande pachorra para notícias alarmantes sobre as secas que estão a
devastar os solos seguidas de outras, igualmente alarmantes, a ameaçarem alertas amarelos, laranjas, vermelhos e o diabo a quatro. Enfim, é o que temos. E o que tínhamos. Setúbal, Montargil,
Sousel, Pinhal Novo e toda a zona algarvia estavam sob a atenção dos bombeiros e dos sapadores. Sarjetas entupidas eram ao Deus-dará. Como de costume, as entidades municipais esqueceram-se
de as limpar antes da chegada das chuvas e ribeiros de água porca misturada com detritos vários iam dando largas à sua libertação transformando ruas e vielas em rápido de fazer inveja aos do
Colorado. As missões de socorro atropelavam-se umas às outras, as sirenes disparavam a cada minuto fazendo estoirar tímpanos mais sensíveis, as lamúrias dos que acumulavam prejuízos eram
conscienciosamente gravadas pelos repórteres das rádios e da televisão. Os telejornais teriam muito para dizer nesse dia 2 de novembro de 1968. E não só sobre os temporais. GATUNOS. Em Vila
Nova de Cacela, não longe de Monte Gordo, não faltou quem, de forma cínica e vergonhosa, tratasse de tirar proveito da desgraça alheia. Um grupo de meliantes, perante a confusão de uma
população desesperada, deitou mãos ao seu trabalho desonesto. Pelo menos três homens, de cara destapada, o que confirmava a sua sem-vergonha, arrombaram o estabelecimento de mercearias e
vinhos do sr. Manuel Mateus Pereira. Ora, o sr. Pereira era dos poucos indivíduos avisados daquelas paragens. Tinha arrumado o material todo com antecedência, colocara tudo o que a água
pudesse destruir em lugares altos, tapara as frinchas com sacos de areia, e fora para casa mais ou menos descansado porque numa altura daquelas ninguém podia dar-se ao luxo de descanso
absoluto. Pobre Manuel… Se ele soubesse… Os gatunos não tiveram qualquer respeito pelos seus ínfimos cuidados. Usaram e abusaram. Deitaram uma janela abaixo, introduziram-se no
estabelecimento e desapareceram por entre os pingos de chuva com um cofre que tinha guardados cerca de 6.500$00 e 500 pesetas. Nunca mais ninguém os viu e a polícia não lhes pôs as mãos em
cima. Não foram caso único, além disso. Roubos idênticos tiveram lugar noutras terriolas, embora envolvendo valores menores. Gentalha sem escrúpulos tirava partido da desgraça alheia. E o
macaco?, perguntará o leitor. E o macaco? Pois muito bem, já lá iremos… FINALMENTE! Bem mais a norte, de Vila Real a Vila Real, a de Santo António, da qual Cacela faz parte, à de
Trás-os-Montes, os assaltos repetiam-se. Uma caixa registadora, cuja falta ninguém reportou, foi encontrada no meio da rua. Alguém a desfizera à custa de valentes pancadas, provavelmente com
um martelo. O dinheiro, se o havia, voou, claro está. Se não foi levado pelo vento, foi parar aos bolsos de algum energúmeno. Filipe Nogueira também não teve mãos a medir. O seu popular
programa televisivo, Sangue na Estrada, trouxe a público não apenas o sem-número de acidentes que marcaram esse dia maldito como também uma série de conselhos úteis para quem se preparava
para se sentar ao volante, número muito considerável se considerarmos que o Dia dos Fiéis Defuntos arrasta multidões aos cemitérios mesmo que, para isso, tenham de percorrer um ror de
quilómetros. Pois, pois… mas o macaco. Que é feito do macaco? Não se amofinem. Vem já a seguir. Entretanto, em Abravezes, Viseu, dois pilantras ligaram para casa do padre e suplicaram-lhe
para ir com urgência dar a extrema unção a um terceiro que caíra de um telhado quando tentava impermeabilizar o sótão de sua casa. Mal chegado, o pároco levou uma valente carga de porrada
que o deixou sem sentidos, tendo sido naturalmente aliviado do dinheiro que trazia consigo. A Guarda Nacional Republicana afirmava, pomposa, que não tinha dúvidas em relação aos
perpetradores de tamanha ignomínia e que não tardariam a ser posto no xilindró. A malta fingia que acreditava. Era um dia que parecia nunca mais acabar, esse do qual falo hoje, e ainda não
entrou o macaco na história porque, em Lisboa, um grupo de cavalheiros bem intencionados resolveram, de uma vez por todas, pôr ordem no Bairro Alto. Adivinho os sorrisos escarninhos na cara
dos leitores. Já lá vão mais de cinquenta anos e ninguém conseguiu tal proeza, pelo que as boas intenções dos senhores iriam dar com os burrinhos na água. Numa carta dirigida a quem de
direito, e publicada como carta aberta num dos vespertinos da capital, o sr. Pedro Mateus insurgia-se: “Sucede que, quase todas as noites, a altas horas da madrugada, o sossego dos moradores
do nosso bairro é interrompido por barulhentas reuniões de indivíduos que certamente não trabalham durante o dia”. A missiva era assinada, igualmente, por uma série de habitantes das ruas
mais barulhentas, a Rua do Norte e a Rua das Gáveas, onde se instalavam casas de fado. Ah! Se o sr. Mateus soubesse o que aí viria de ruído no Bairro Alto… Desistiria, muito provavelmente,
dos seus emocionados esforços de escrever no meio das tempestades e enfiaria a cabeça debaixo da almofada para esquecer os anos que aí vinham e transformaram o bairro numa casota de cães sem
dono a céu aberto. Por falar em cães… A secção de Achados e Perdidos da Polícia de Segurança Pública de Lisboa, instalada no Governo Civil, andava às aranhas. Por entre os habituais
relógios de pulso, colares de prata e pechisbeque, uma pasta-lancheira com louça suja, uma carteira com documentos do sr. Joaquim Martinho dos Reis, os bilhetes de identidade de António
Albino Prates, Isabel Maria Beltrão da Silva e João Mendes dos Santos, um porta-moedas com dinheiro e duas notas do Banco de Portugal, esperava com ansiedade que alguém viesse reclamar um
macaco conquanto pudesse provar que o animalzinho lhe pertencia. “Um macaco?”, perguntava o jornalista. “Sim, sim, um macaco!”, respondia o responsável pela secção. “Mas um macaco com que
aspecto?”, insistia o repórter. “Ó homem! Um macaco daqueles da selva! Eu percebo lá de macacos. Talvez tenha vido de África. Estamos à espera de notícias do dono. O animalzinho é simpático,
mas não pode ficar aqui para sempre!” Não havia como não dar razão ao agente policial. Mas, que diacho, com Lisboa e o país por arrasto envolvidos num temporal de arrasar casas e nervos,
quem haveria de andar amargurado por causa de um macaco. Talvez o seu proprietário pensasse que o bicho teria sido levado pelo vento. Vento esse que soprava com a força de um tufão… Como
diria Otto Lara de Resende, Spínula era uma figura, uma figura! Aquele jeito de marechal prussiano, monóculo à Eça de Queiroz e um tom de voz que devia provocar danos irreversíveis às
cordais vocais, bimbalhadas como os carrilhões de Mafra. Teve dificuldade em ser consensual e, provavelmente, tal até o incomodava. No dia 30 de Abril de 1975, a imagem de António Sebastião
Ribeiro de Spínola estava definitivamente abalada. O presidente da Junta de Salvação Nacional, 14º da República Portuguesa, germanófilo convicto, que acompanhou “in loco”, em 1941, as
movimentações da Werhmacht no início do cerco de Leningrado, gastara os trunfos da sua popularidade no dia 28 de Setembro do ano anterior no enorme fracasso que foi a sua falhada invenção da
Maioria Silenciosa e, sobretudo, na tentativa de golpe de Estado de 11 de Março, uma deriva de direita que, convenhamos, lhe estava na massa do sangue, e o fez fugir primeiro para Espanha e
em seguida para o Brasil. Tornou-se, de um dia para o outro, o bombo da festa daqueles que sentiam, para o bem e para o mal, ideólogos do 25 de Abril, como era o caso de Vasco Lourenço.
Numa entrevista compilada em livro – MFA, Rosto do Povo – que surgiu no Diário de Lisboa em retalhos, não poupou o general do monóculo a uma das maiores invectivas da sua existência. E foi
até às raízes do relacionamentos entre ambos na guerra da Guiné: “As nossas relações foram das piores possíveis. Por tudo. Por questões operacionais, por feitio pessoal, e porque nunca
aceitei bem a autocracia dos meus superiores. Pegámo-nos e a sério. Quando terminei a minha comissão recusei-me mesmo a aceitar o seu convite para jantar no Palácio do Governo, a residência
dele em Bissau”. E sublinhava: “Devo informar que só os interesses do Movimento das Forças Armadas e os superiores interesses do país me levaram a entabular, de novo, relações com o
ex-general Spínola”. SIMPATIAS NAZIS. Este ex-general era, no mínimo, uma expressão assassina após o que sucedera a 11 de Março. Por coincidência ou conveniência, houve parte da imprensa que
desenterrou fotografias de Spínola numa das suas excursões a Leningrado. É visível o seu perfil, de bivaque negro e capote alentejano, ele que era natural de Estremoz, a cidade do tremoço,
no Distrito de Évora, misturado com os seus colegas do exército nazi. Em 1975, os nazis não eram especialmente bem vistos, e ainda não são, valha-nos Deus, se é que ele existe. Spínola era
esmagado por quem tinha a hipótese de pisá-lo. Foi também por essa altura que começou a usar monóculo, o que lhe dava um ar de enigmática aristocracia castrense, mas valeu-lhe, igualmente,
uma das suas alcunhas mais viperinas: o Caco. Vasco Lourenço não o poupava de forma alguma: “A influência de Spínola na minha tomada de consciência política foi absolutamente nula. Não posso
negar que, em termos militares, lhe reconheço muitos méritos. Mas, também, enormes defeitos. Penso que o ex-general pretendeu ser um novo De Gaulle, pessoa que ele admira nuito. Porém, e
devido à influência de muitas pessoas a ele ligadas, falhou por completo e limitou-se a ser um novo Naguib”. Naguib, Muhammad, claro, o general egípcio que foi mandado encarcerar por Nasser
depois de ter sido o estratega da Revolução de 1952 e primeiro presidente da República egípcia. As semelhanças entre as figuras pairavam, inevitáveis, sobre o que acabara de acontecer em
Portugal. HERÓIS DO PARIS-MATCH. Spínola tornou-se fascinante para a imprensa internacional. E um chamariz. Jornalistas internacionais, enviados-especiais ao país que fizera uma Revolução em
que o vermelho do sangue dera lugar ao vermelho dos cardos, exameavam em seu redor. Consta-se que isto também terá ferido o orgulho dos verdadeiros ideólogos do 25 de Abril. Vendo bem,
António Sebastião fora atirado para a frente dos revoltosos pela simples razão de que, sendo eles na sua maioria, oficiais de baixa patente – também chamaram ao 25 de Abril a Revolução dos
Capitães -, havia que delegar determinadas funções a alguém do topo hierárquico. Spínola era a figura perfeita de um militar à moda antiga a dirigir um país parado no tempo pelos caminhos da
modernidade. Patrick Chauvel, o grande fotógrafo do Paris-Match, não tardou a desembarcar em Lisboa para registar para a posteridade o general do monóculo. Veio directamente do Cambodja
onde fora atingindo num ombro por estilhaços de uma bazuca. Um dia, escreveu: “Não é o Pierre Renoir de La Bandera, nem o Von Stroheim de La Grande Illusion. O general Spínola faz
verdadeiramente a guerra. Na Guiné. Imagem soberba e irrisória: um pequeno país que possuía, há quatrocentos anos, um império imenso, sobre o qual o sol nunca se escondia, esgota-se hoje no
último combate colonial do século”. Isto foi antes de 1975, obviamente, Foi ainda no tempo em que Spínola tentava organizar o caos em que se transformara a guerra na Guiné e percebera, como
depois registou no seu livro, Portugal e o Futuro, que ela já não estava mais no campo militar mas no da diplomacia. Chauvel, mais uma vez: “Atirados para um território muito quente, com uma
vegetação muito densa, vigiados pelo inferno das emboscadas, os camponeses de Beja, os pescadores da Nazaré ou os estudantes de Coimbra cuidam da sua elegância, a exemplo do seu
comandante-em-chefe: ‘Mais vale ir para o céu com um uniforme como deve ser’”. No turbilhão político em que se transformou a sua existência, António de Spínola cultivou até ao fim a sua
imagem impecável. Havia nele uma alma de dândi indestrutível, fosseem quais fossem as condições em que se encontrava. Em Abril de 1975, ruíra como estratega políticos e viu-se obrigado a
sair do país. Terá alimentado até ao fim da sua vida, em Agosto de 1996, a ambição de regressar ao poder.