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O escritor catarinense Marcelo Labes, 36 anos, inventou uma nova categoria literária – o “livro vingança”. Tudo bem, não há nada de novo sob o céu. Deve existir uma biblioteca entupida até a
boca, só com obras feitas para “dar o troco”. A dose de pimenta varia: vai da vingancinha do pipoqueiro à monumental lavagem de roupa suja feita por Nina, a protagonista da novela _Avenida
Brasil._ Uma das músicas mais famosas do nosso cancioneiro, a propósito, se chama “Vingança”, de Lupicínio Rodrigues e, em tempos da dor-de-cotovelo, era a trilha sonora dos suicidas. Em
miúdos, à revelia de sermos uma nação cristã, no lugar da outra face às vezes o que oferecemos é um senhor diabo a quatro. De modo que ainda que Labes não seja o primeiro, talvez seja o
melhor nome da categoria lítero-passional “a vingança é um prato que se come frio”. Eu explico e você se segura na poltrona, combinado? Pense num cara f*. Nos dois sentidos. Na sua vida
faltou grana, faltou tudo, só não faltou talento, ingrediente que, por ser cheio de caprichos, não paga as contas em dia. Se ele penou? Penou. Até lançar _Enclave_ (ed. Patuá, 2018), obra de
poesia que o empurrou para fora do circuito do Vale do Itajaí, seu endereço por uma encarnação inteira. Paralelo, corrigia teses e fazia as vezes de _ghost writer_. Foi quando decidiu
escrever sua própria prosa. O que se deu, parece o quadro “Portas da Felicidade”. Seu romance de estreia, _Paraízo-Paraguay_, é uma narrativa histórica, temperada por boa sociologia, sob
medida para tratar de homens perdedores – tema que na voz de Labes desvia dos lugares comuns a respeito de masculinidade. O livro foi o segundo colocado no prêmio Machado de Assis da
Biblioteca Nacional e primeiríssimo no prêmio São Paulo de Literatura 2020. Com o dinheiro, o autor conseguiu a chave da casa própria e parou de contar com a caridade alheia. Agora pode se
dedicar a sua editora, a Caiaponte, assim chamada numa alusão divertida à Ponte Hercílio Luz, cartão-postal de Florianópolis, cidade que escolheu para chamar de sua. No mais, faz-lhe bem
escrever sem medo que lhe cortem a eletricidade. “Enfim sós”, com a literatura. Foi nesse clima de quase bonança que surgiu _Três porcos_, o “livro vingança”, ainda cheirando a tinta. O que
Marcelo tramou ao longo de 192 páginas, não é para amadores. Como em _Paraízo-Paraguay_, a escrita nasce das montanhas, do calor de derreter catedrais e das águas impiedosas da cidade de
Blumenau – também conhecida pelos sátiros de plantão como _Neverland._ Não é preciso ser muito desconfiado de panfletos turísticos para suspeitar que “Blu”, no Nordeste da Bela e Santa
Catarina, não é uma eterna Oktoberfest, com gente loura por todos os lados, na qual somos recebidos por sanfoneiros sorridentes. Milhares de garotas com cara de Vera Fisher não brotam feito
begônias do Vale Europeu, com uma caneca de chope gelado numa mão, um prato de _eisbein_ na outra. Marcelo vem de um lugar chamado Progresso, por ironia, região que custou a conhecer o
asfalto, o coletivo, o poste de luz. “Somos uma família de alemães do fim do mundo. Depois do nosso bairro tem as montanhas e mais nada”. A mãe era doméstica, o pai operário. A vida, uma
lenha. Nas pirambeiras da região, ser branco, ter olhos claros e sobrenome alemão não é, a rigor, passaporte para o Sul Maravilha. Alguém pode se chamar Labes e consumir a juventude na
limpeza das casas de família, arruinar a saúde numa tecelagem, repetir a sina do alcoolismo, envelhecer num subemprego e – no caso do hoje escritor – estar sujeito a abusos sexuais na
infância. “Há o fascismo dos pobres”, repete. É do que trata _Três porcos_, livro categoria “escrita de si” – um transe entre o ficcional e o biográfico – cuja proeza é ganhar a cumplicidade
do leitor ao tratar de um assunto que provoca repulsa: a pedofilia. O trauma de Marcelo menino estava encruado, num canto da alma. “Eu falava de tudo, menos disso”. Até que contou o que lhe
aconteceu, meio que ao acaso, numa conversa por WhatsApp com a amiga poeta Amanda Vital, a quem dedica o trabalho. Bateu barata-voa. Acabou na terapia, mas a psicóloga pouco interessada
respondia mensagens durante a consulta. Passou para a escrita – vertiginosa e anacrônica, com surpresas em série, todas tiradas da vida como ela é. “Não creio que dê para se curar
escrevendo, mas se eu resolvesse tudo, os conflitos não apareceriam e o livro não sairia. Precisava dele cru”. Por um desses milagres da arte, permanecemos ao lado de Marcelo, ali rebatizado
de Rafael, um protagonista em carne viva, que salta no tempo, lambendo feridas. Numa página brinca de jogar pedras num ônibus, noutra espanca um burguês num mictório de supermercado, noutra
sofre por ver a companheira descer a escada e partir. Ele cumpre o que promete – uma experiência literária. Como o autor/narrador ainda não se acertou com passado, nos livra de jogos ou
segredos. “Eu escrevo no calor da hora”, diz. É como se tivéssemos autorização para deitar com ele no divã, lugar de onde assistimos impotentes aos episódios trágicos que “roubam o homem que
ele poderia ter sido”. De quebra, nos tornamos solidários com sua vingança, acompanhando-o, mais de duas décadas depois dos acontecimentos, para perto dos abusadores, passar tudo a limpo.
Pois é: a essa altura, o título do livro, claro, faz todo sentido. Não estamos diante da fábula dos _Três Porquinhos_. Labes, por sinal, dedica algumas páginas para falar dos porcos –
onipresentes na cultura e na gastronomia alemã. São animais domésticos com 44 dentes, criados para o abate, mas também podem matar e devorar os que os mantêm cativos. Eis a chave. CONFIRA
TRECHOS DA OBRA: > “Homens se reconhecem. Um homem forte reconhece outro homem forte > como um oponente e já direciona suas armas contra ele. Os homens > fracos nos reconhecemos de
outra maneira: olhamo-nos com pena, e por > mais que queiramos nos ajudar, nos sabemos fracos: isso limita > qualquer tentativa de nos curar e nos proteger uns dos outros. > Voltei
ao escritório com pena de Bruno, que não deva ter dezoito > anos e já estava perdido no mundo.” (p. 15) > “Ela me perguntou se eu queria de novo confundir as pessoas. Isso > faz
parte dessa literatura de que tu quer fazer parte, a nova > literatura contemporânea brasileira? E antes que eu respondesse, > emendou: Por acaso tu quer que as pessoas tenham pena de
ti?, que > que elas esqueçam que tu é um homem, branco, hétero e a coisa > toda? Disse a ela que eu não era mais um escritor branco e > privilegiado, porque afinal eu era pobre,
sempre fui, não tinha > como reacertar a vida porque estive sempre no lugar errado...” (p. > 37) > “Valter participava dos meus dias. De início, pouco, porque eram > encontros
esporádicos os que tínhamos. Mas logo ele passou a > almoçar às terças e quintas-feiras na casa da patroa da mãe. Eu > saí da aula e caminhava umas quadras, subia um morro dolorido de
> tão íngreme, chegava para o almoço. Sentávamos à mesma mesa, a > mãe e eu, que o resto da família. Valter sentava-se ao meu lado, > contava histórias, fazia jogos de mágica com
talheres. Tinha um > lado menino nele que abraçava o menino que eu não queria deixar de > ser, púbere, pré-adolescente, dor nos ossos e no coração.” (p. > 82)