A coragem dos holandeses

feature-image

Play all audios:

Loading...

Que o brasileiro é chorão nós já sabemos. Que o brasileiro é sensível e expressa seus sentimentos, também já sabemos. Sabemos até que o brasileiro se acha um pouco melhor que outros povos,


frios e controlados, por ser assim tão emotivo e expressivo. Pois eu acho que essas características brasileiras compõem mais o retrato de um bebê chorão do que o de um adulto emocionalmente


maduro. Quando se trata de reconhecer o mal que podemos fazer a outras pessoas, muitos brasileiros perdem toda a sensibilidade. É essa a explicação que encontro para a insistência de muitos


em contestar a lei seca. Quem dirige após beber – mesmo que não esteja caindo de bêbado – não tem 100% de sua capacidade normal de atenção e reação. Torna-se, portanto, um motorista mais


perigoso. Torna-se mais distraído, corajoso e ousado. Os ingleses inventaram uma gíria para designar o espírito de quem dirige sob o efeito do álcool: coragem holandesa (Dutch courage). É um


termo pejorativo; na época das Grandes Descobertas, quando os Países Baixos competiam com o Reino Unido na conquista de terras e mercados, tudo que era holandês era ruim para os ingleses.


Por isso batizaram a audácia dos bêbados de coragem holandesa. Se dirigir depois de beber nos torna motoristas perigosos, que podem provocar um acidente que tire a vida de outras pessoas,


não há justificativa para insistir na brincadeira. Será que aquele prazerzinho de sexta-feira à noite é tão importante assim que não deixa o fulano perceber que está brincando de


roleta-russa? Pior, ele está pondo a arma na cabeça de outras pessoas. Na hora de perceber a responsabilidade, onde está toda aquela sensibilidade que nos faz chorar como bebês até com a


propaganda de margarida que vemos tevê? Tem coisas que são simples assim: é gostoso, divertido, mas é perigoso. Portanto, é algo a ser evitado. Se for perigoso para terceiros, é algo a ser


totalmente evitado. A não ser que você seja irresponsável. Os números são impressionantes e não deixam dúvida. A restrição ao consumo de bebidas alcoólicas por motoristas provocou uma


redação memorável no número de acidentes. A mesma coisa já aconteceu em outros países. A reação à lei reflete também a falta de consenso sobre o assunto. Se a maioria da população estivesse


convencida de que a segurança da comunidade justifica alguns cuidados extras com o consumo de álcool, alguns pequenos sacrifícios (como pagar táxi para voltar para casa), sobraria pouco


espaço para resistência. É assim que funciona uma sociedade – as regras que derivam de consensos sociais são naturalmente acatadas. As regras que impõem um novo comportamento que ainda não


faz parte de um consenso encontram resistência. No caso da lei seca, a falta de consenso se reflete até na atitude das autoridades de trânsito, que em alguns estados – caso do Paraná – não


estão sendo severas na fiscalização. Por isso os que não estão convencidos de que beber e dirigir é um comportamento irresponsável e perigoso, e que precisariam ser "convencidos"


pelo temor da repressão, estão botando as manguinhas de fora, sem medo de blitz. E que venham os holandeses! MARLETH SILVA É JORNALISTA.