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Em sua fala no 1.º Seminário de Saúde, Segurança e Qualificação do Profissional Motofretista de Curitiba, ocorrido na última terça-feira no Mercado Municipal, o ortopedista Rached Hajar
Traya, do Hospital do Trabalhador, soltou a frase que resume a ópera: "Chega de demonizar os motoboys, ou que nome eles agora tenham". Matou dois coelhos, como se diz. Podemos
começar pelo nome: a palavra motoboy já deu sinais de cansaço e merece ser aposentada, assim como bóbis e bomba de flit. Nasce de um misto do motoqueiro com office-boy, dando a esse ofício
alguma aura de molecagem, que de resto não mais lhe convém. Os dados sobre morte e invalidez provocados por veículos de duas rodas estão aí para mostrar que não se deve brincar em serviço. A
denominação motofretista ainda que não tenha poderes sobrenaturais de mudar a atitude algo insana que move alguns condutores é de resto perfeita para demarcar um novo capítulo na vida
do jovens e jovens adultos que abraçaram esse ofício. Se motoboy costuma ser sinônimo de alta velocidade, manobras perigosas e sobressaltos a granel, motofretista tende a equivaler a direção
segura e consciência de direitos e deveres. Não se trata de uma mera questão de terminologia, com o propósito de alimentar a chatice humana. A alvorada das motos é um fato irreversível nas
grandes cidades brasileiras. São cerca de 15,3 milhões de veículos, o dobro do que havia em 2005. Quem a escolhe não são apenas rapazes e moças pobres e de baixa escolaridade, dispostos a
trabalhar sem carteira assinada e a cumprir horários inatingíveis até para super-heróis. Cada vez mais gente de todas as cepas escolhe a motocicleta para economizar tempo e dinheiro. Para
lidar com essa mudança de perfil no trânsito só há uma saída: refazer todos os planos e incluir a turma da moto nos discursos e nas práticas públicas, como manda a boa educação e o
bom-senso. É o que o doutor Rached chama de "não demonizar". O motofretista, motoqueiro, motoboy não é tratado como cidadão de direito. Resta-lhe sempre a culpa e, não raro, os
motivos que geram 8 mil mortos ao ano oscilam entre os mecânicos, os fatalistas, os provocados por outros veículos. Tudo isso pari passu, claro, com os pecados do próprio condutor de moto.
Em miúdos, já passa da hora de profissionalizar a discussão, deixando de tratar as duas rodas como uma espécie de praga na lavoura. Nenhum veneno há de fazer com que os entregadores de
pizzas e de remédios para citar a atividade-símbolo da categoria sumam do mapa, para alegria dos fascínoras. As motos são um sinal das nossas disparidades sociais, do caos de nossos
centros urbanos e de que como qualquer outro país emergente, não seremos nem Londres, nem Los Angeles, mas um pouco de tudo isso, com muitas motocicletas em volta. Estamos mais para Índia,
onde motos abundam como véus. A conversa não acaba por aí. Em paralelo à mediação de conflitos de trânsito, o "fator motofretista" é uma questão de saúde pública. Verdade seja
dita: há uma sinistrose em torno do assunto. Fala-se, em demasia e, sem muito jeito, dos 22 condutores mortos por dia no país. Por essas bandas, o número chegaria a um a cada 2,6 dias,
confirmando que estamos escrevendo, com linhas tortas uma das nossas piores histórias. Há de ficar ao lado do narcotráfico, dos crimes hediondos, da roubalheira institucional e dos pegas em
túneis interditados. O parangolé é que falar apenas das mortes equivale a uma cortina de fumaça. Há uma morte lenta por trás dos acidentes. Uma fratura em queda pode representar meses de
espera por tratamento no Sistema Único de Saúde. Para falar o mínimo: as falhas nas políticas de trânsito têm gerado, de fato, uma geração de mutilados. Pior uma geração de jovens com
problemas de invalidez e com difícil aderência ao mercado de trabalho. Pesquisa do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, o Ipea, mostra que a chance de um acidente de moto levar a
óbito é de 71%. A mesma porcentagem vale para um acidentado carregar marcas profundas por toda a vida. Essa conta ainda não fechou. Mas a tomar pelo levantamento da Gazeta do Povo, feito no
mês de maio, a cada ano 1,5 mil paranaenses ficam mutilados por causa de acidentes com motos. E olhe que não estamos mandando ninguém para o Afeganistão e o Iraque. Responder por que cargas
dágua esse número tão assustador passa despercebido como se fosse um surto de mosquitos no verão é de fato cruel: por que não interessa tanto quanto deveria. Vê-se o motoboy como um
bico. Não é. Que vire motofretista, que sua participação na economia seja revelada e chega de jogar tanta carga sobre eles: duas rodas são muito pouco para carregá-la.