Triste utopia

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Neste ano novo, proponho que o leitor use sua imaginação para, como no clássico de John Lennon, imaginar um mundo novo, sem países, sem posses e sem religião; um mundo onde, supostamente,


todos viveriam em paz. Ignore a ingenuidade de se crer que, abolidos os três "vilões" – nações, posses e religião, esta última o meu interesse neste artigo –, reinaria a paz; as


experiências do socialismo real que o digam! Admitamos, porém, que a religião pode servir à violência. Ouso dizer que se trata de uma perversão da fé: fruto da pessoa que ataca quem não


partilha de sua crença para se proteger da própria insegurança – fenômeno não restrito às religiões, diga-se de passagem. Enfim, casos como a Inquisição católica ou a execução de apóstatas


em Estados islâmicos dispensam comentário. Feita essa ressalva, quero olhar para o outro lado da moeda utópica: o que o mundo perderia se descartasse a religião? Atribui-se ao romance Os


Irmãos Karamazov, de Dostoievski, a frase "se Deus não existe, tudo é permitido". Discordo. Mesmo sem crer em Deus, continuaríamos a saber que matar é errado, continuaríamos a amar


nossos parentes e amigos etc. As pessoas sem fé têm muitos motivos para viver e fazer o bem. Conhecer o universo, experimentar as possibilidades da vida, criar coisas novas, fazer amizades,


encontrar o amor, ajudar as gerações futuras; coisas boas que não dependem da crença numa aprovação divina. Há, contudo, um espectro sombrio que paira sobre tudo isso. Podemos esquecer que


ele está lá e fingir que a última palavra não será dele; mas será. Estou falando da morte. Para além de qualquer propósito elevado, lá está ela, decretando o fim de tudo. Caminhamos todos,


nós e nossos sonhos, para a poeira cósmica. Uma convenção clássica do teatro dizia que comédias terminam em casamento e tragédias em morte. Sendo assim, a vida humana é, no mundo sem Deus,


necessariamente trágica. Sem Deus, o bem existe, mas será derrotado. Todos os nossos esforços na direção do que é bom e elevado ficam comprometidos pela falta de sentido último da


empreitada. No máximo, podemos aproveitar esta vida, tirando dela o que for possível e se contentar com isso. Mas, se for assim, o que dizer de todas aquelas pessoas que não fruíram do bom e


do melhor? O que pensar das vidas vividas no sofrimento, na indigência, no esquecimento, e de todos os "fracassados" e "perdedores"? E dos que se arrependem amargamente?


Como justificar essas existências? A crueldade do mundo sem Deus é metafísica. É por isso que, à sentença de Dostoievski, prefiro a de Guimarães Rosa – também parafraseada – em Grande


Sertão: Veredas: "se Deus não existe, nada é permitido". Todo erro é final; todo fracasso é uma vida jogada fora. Sem o "céu sobre nós", como propunha a canção de Lennon,


resta a vida como tragédia. O mal e o erro continuam a existir; o que acaba é o perdão vindo do alto, e com ele a redenção. Os fracassos continuarão; o que cessará é a possibilidade de que


eles contribuam para uma vitória final. Com a fé, é possível encarar a vida como comédia. Não é à toa que uma das principais imagens da relação entre Cristo e a Igreja – o conjunto dos fiéis


– seja a do casamento. A utopia sem o céu espiritual é um mundo sem esperança e sem perdão. Agora, imagine se alguém tiver vencido a morte; it’s easy if you try... _Joel Pinheiro, mestrando


em Filosofia, é editor da revista cultural Dicta&Contradicta._