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A genealogia, em seu estrito sentido, rezam os dicionários, é o estudo da ciência com a finalidade de determinar a origem das famílias. Todavia, é necessário vê-la também como algo
fundamental para o conhecimento da vida de um povo, conforme entendimento de Foucault ao considerar como seu objeto: "Identificar as relações do poder que deram origem a idéias, valores
ou crenças". É nessa perspectiva que se deve situar a singularmente múltipla personalidade de Afonso Arinos de Melo Franco, no instante em que a Nação faz memória do centenário de seu
nascimento. De diferentes formas, Afonso Arinos se manifestou e legou um acervo ainda não de todo conhecido. Polígrafo, doutrinou no território do Direito como professor e jurista , foi
historiador e memorialista, cronista, ensaísta, crítico literário, articulista, conferencista. Se tanto se pode salientar de sua abrangente produção intelectual, em menor plano não se deve
situar a sua vida pública, vocação desde cedo despertada. Homem de Estado, probo e lúcido, Afonso Arinos pode ser definido como um liberal da mais lídima tradição da política brasileira
Ser liberal é, antes uma atitude, um estilo de vida, "uma conduta existencial", como definiu Raymond Aron. Ademais, os liberais não se proclamam portadores da verdade e sabem que
somente o debate e a controvérsia inoculam enzimas que fertilizam a solução dos problemas da sociedade. Designado por Tancredo Neves, presidiu o grupo de notáveis que ficou conhecido como
"Comissão Arinos" e foi incumbido de elaborar sugestões à Constituinte instalada em 1987. Mais adiante, foi escolhido para dirigir a Comissão de Sistematização, que elaborou o
projeto de Constituição a ser discutido pelo Plenário. Na sessão de promulgação da Carta de 1988 lembrou, em nome dos constituintes, a experiência histórica brasileira e observou que os
autores de Direito Constitucional Comparado registram um fenômeno marcante: "(...) nunca existiu distância maior entre a letra escrita dos textos constitucionais e a sua
aplicação". E, ao encerrar, advertiu que outra tarefa se abria aos membros do Congresso Nacional, a de "apesar de quaisquer divergências... colaborar nas leis que a tornem mais
rapidamente e mais eficazmente operativa". Não se pode deixar de destacar que os instantes de ruptura em nosso processo político decorreram do distanciamento entre a condução
autoritária do Estado e as aspirações democráticas da sociedade, só satisfeitas quando o poder se reconcilia com a Nação. A Aliança Democrática, pactuada há 20 anos, é bem a expressão desse
querer coletivo. Afonso Arinos dela participou ativamente desde o processo de mobilização para a "Nova República", expressão por ele cunhada para definir a plataforma do novo
governo. Na madrugada de 15 de março de 1985, sobreveio o anticlímax do processo político: a imprevista hospitalização de Tancredo Neves causando perplexidade ao País e parecendo frustrar,
na vigésima quinta hora, os sonhos do grande projeto que unira a Nação. Tornou-se indispensável agir rapidamente. Era essencial a iniciativa de não interromper o curso da legalidade. Uma vez
mais, o mestre Afonso Arinos, com sua autoridade moral e na condição de duas vezes professor de Direito Constitucional, apontou a solução, invocando o artigo 77 da Constituição então em
vigor, encerrando as divergências que pudessem ser suscitadas, garantindo a posse do vice-presidente, José Sarney. É útil à Nação recordar episódios da exemplar vida de Arinos que realçam a
sua presença na consolidação da democracia no tecido social brasileiro. Em tese, defendida na década de 50, intitulada "História e Teoria dos Partidos Políticos no Brasil", Arinos
sustenta não ser possível a democracia sem a existência de partidos políticos e conclui: "Manter a democracia significa pois, para o Brasil, cultivar e robustecer a instituição dos
partidos. (...) Todo o brasileiro consciente tem o direito de se integrar a um partido, como prova da aquisição de uma verdadeira cidadania. O partido é o lar cívico". Em 1947, votou
contra o projeto de cassação dos parlamentares do então Partido Comunista Brasileiro. Igual conduta adotou em 1957, por ocasião da tentativa de cassar o mandato de Carlos Lacerda. A Lei
Afonso Arinos, dos idos de 1951, contra o preconceito racial, paradigma a inspirar iniciativas semelhantes em todo o País, é também medida que concorre para a consolidação de uma sociedade
multirracial. Sobre Arinos, afirmou o ministro e seu colega na Câmara dos Deputados, Aliomar Baleeiro: a ele "caberia a divisa latina E plurimus unum, tal a versatibilidade de
aptidões e de talentos dentro da unidade monolítica de seu espírito". Tudo nos conduz, portanto, a situá-lo como um ente dotado do dom da sabedoria: a um só tempo telúrico, posto que se
considerava "três cruzes brasileiro", e universal pela sua condição de pensador; telúrico não mero provinciano, universal, não um cosmopolita que se julga cidadão de todo o mundo.