
- Select a language for the TTS:
- Brazilian Portuguese Female
- Brazilian Portuguese Male
- Portuguese Female
- Portuguese Male
- Language selected: (auto detect) - PT
Play all audios:
Se o Nobel de Bob Dylan teve um benefício global, foi a oficialização da flexibilização do conceito de literatura. Para muito além de palavras no papel, a literatura em Bob Dylan é também
som, ritmo, expressão vocal e performance. Se para prêmios literários passaremos a considerar outras formas de expressões gráficas também, entre elas os quadrinhos, gostaria de sugerir um
nome para a Academia Sueca: Bill Watterson, criador de Calvin e Haroldo. Veja também Watterson é sensível, de bom gosto, domina um estilo impecável de narrativa, é alinhado com questões
contemporâneas sem contudo datá-las, enfim, é um gênio para quem quiser ver. Voa por baixo dos radares da crítica por fazer o que ainda é considerado uma arte menor, chamada comicamente por
alguns ufanistas de “nona arte”. Que aliar texto e imagem e ser responsável por uma excelente técnica para os dois não seja o bastante para os críticos pomposos, a psicanálise dará jeito.
Mas é claro que simplificando dessa forma, muitos artistas fazem isso hoje em dia e o criador de Calvin e Haroldo é apenas mais um. Calvin e Haroldo é um desses casos em que não há problemas
em deixar a obra falar em nome do artista. Considerada pelo leitor ingênuo uma mera tirinha sobre o mundo infantil, Calvin, para muito além do delírio idealista de Quino e sua Mafalda, é
uma ode ao empoderamento do oprimido que não deixa de levar em consideração o caráter individualista da alma moderna, sendo a imaginação sua melhor arma contra o mundo. Calvin é brilhante
mas não tem amigos, a não ser o tigre Haroldo (no original: Hobbes, batizado a partir do autor de ‘Leviatã’) que ganha vida em sua imaginação. Contorna o sistema escolar e familiar com
astúcia e, por vezes, com uma conveniente e dissimulada ingenuidade. Usa sua imaginação para fugir do mundo real, com o qual se conforma muito pouco. Mas seu senso de justiça não passa
incólume de certa vingança. HIGHBROW E LOWBROW Por afinidade com questões atuais, Calvin contém em sua essência o homem moderno e suas idiossincrasias. Exige uma vida eufórica e cria as
próprias bases de erudição a partir de um repertório misto, que vai de Edgar Allan Poe a uma revista para mascadores de chiclete. Para ele e para seu criador, não há uma linha que separe o
highbrow do lowbrow. Um Nobel para tal defesa iconoclasta seria a iconoclastia a que a Academia Sueca se pretendeu esse ano escancarada em sua forma e conteúdo. Literariamente, Calvin e
Haroldo têm todas as características de uma literatura contemporânea de qualidade: é dinâmica, intertextual, dialógica com a tradição literária que a antecedeu — a começar com o próprio nome
dos personagens principais — e existencial em um momento em que o homem sem raízes volta a tais questões fundamentais. No mais, como afirma a acadêmica Leyla Perrone-Moisés em seu Mutações
da literatura no século XXI (Companhia das Letras, 2016), o conceito de literatura ganhou novas acepções ao longo da história da humanidade. “A literatura (...) é incessantemente disseminada
e inseminadora, infinitamente reinterpretada. (...) A melhor reinterpretação da literatura é aquela fornecida pelas novas obras que a prosseguem”, diz. Nesse sentido, não há porque
acreditar que uma láurea para Bill Watterson faria o destino da literatura cair em mãos incertas.