Tradição em forma de espetáculo

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Hoje, já se nasce como uma espécie de celebridade: o parto é filmado, fotografado, a mãe faz book da barriga. Ao completar 15 anos, a menina posa de modelo para fotos e pode escolher entre


um baile luxuoso, com direito à valsa com galã de novela, e uma viagem para a Disney. O casamento pode ser um evento dos mais tradicionais, com cerimônia religiosa, vestido branco e mesa de


doces, ou moderninho, com banda de rock, estilo havaiano e drinques exóticos. Seja qual for a escolha, precisa ser digno de gerar burburinho. Há quem diga que estas transformações sofridas


por rituais que marcam momentos cruciais como o nascimento, a reprodução e a morte provocam uma deturpação ou mesmo um esvaziamento desses atos impregnados de simbologia e revelam um


comportamento típico de uma sociedade hedonista e voltada para o consumo. Mas estudiosos afirmam que o que restou dessas práticas tradicionais no mundo urbano e contemporâneo não é uma casca


rígida, destituída de conteúdo, como se pode imaginar quando se pensa, por exemplo, no fato de que muitas pessoas hoje dispensam casamentos religiosos. "Deve-se rejeitar a noção de que


o ritual é uma ‘sobrevivência’ de tempos antigos ou uma mera sucessão de eventos rígidos e destituídos de significado. O estudioso deve não apenas buscar compreender o significado do rito,


como também atentar para as mudanças, inovações e implicações simbólicas atuais", explica Cauê Krüger, professor de Antropologia da Pontifícia Uni­versidade Católica do Paraná (PUCPR).


Iluminada pelo espoucar dos flashes do fotógrafo, em locais tomados por singelos ou luxuriantes arranjos de flores e música selecionada por DJ, a cerimônia do casamento, antes restrita a um


grupo doméstico, ganha caráter de espetáculo. "Isso é muito típico de uma sociedade em que as celebridades dão o tom. Isso acaba ofuscando as questões essenciais desse ritual muito


simples, que é o contrato entre duas pessoas, feito com apenas duas palavras, o ‘sim’ dos noivos, diante de testemunhas e do público envolvido", diz José Guilherme Cantor Magnani,


professor e pesquisador de antropologia da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Ele lembra de um modismo de origens norte-americanas, o Trash the Dress, ou seja, a destruição do vestido da


noiva em sessão de fotos performática, logo após a lua-de-mel, para falar desta tendência da sociedade contemporânea de dar caráter espetacular aos rituais. "Cada vez inventam algo


novo, o que não quer dizer que o casamento, como é feito hoje, não seja ritual, já que, por definição, continua sendo um conjunto de procedimentos formalizados que precisam ser cumpridos


para que se realize", diz. O ritual não se esvaziou, foi ofuscado pelo aparato do espetáculo. "O padre ainda casa os noivos e batiza o bebê, o reitor entrega o canudo, todo o resto


é a parte espetacular", explica. Nas sociedades tradicionais, os bailes de debutantes tinham a função específica de mostrar as moças disponíveis para contrair matrimônio. "Era um


rito público de apresentação, fundamental para o grupo manter coeficiente demográfico", diz Magnani. Hoje, essa festividade, que marca a passagem da vida infantil para a vida adulta, é


retomada com muita pompa, já não mais para apresentar a menina de 15 anos para a sociedade e, sim, para que ela seja prestigiada pelos amigos e parentes. "Procedimentos simbólicos como


a troca de uma peça do vestuário que representaria a juventude para outra simbolizando a maturidade, tendem a apresentar claramente o significado de alteração de status compartilhado por


todos os presentes. Eviden­­te­­mente, a atenção centralizada em uma pessoa, e em sua trajetória biográfica, é elemento central nesse fenômeno e há, ao mesmo tempo, grande comunhão e


rivalidade gerada pelo evento em que o bom andamento da festa, o tamanho do gasto, o número de convidados e sua ‘distinção’ podem ser elementos centrais em relação aos demais eventos


ocorridos ou que venham a ocorrer", diz Cauê Krüger. Dispender muito dinheiro para dar uma festa de arromba também não significa enfraquecer o simbolismo do ritual de acordo com os


antropólogos. "É claro que, para quem produz casamento, a cerimônia é uma mercadoria. Mas, para quem casa, é um rito de passagem importante", explica Marcos da Silva Silveira,


professor de Antropologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Diante da dificuldade de se organizar um evento com caráter espetacular de forma doméstica, é preciso contratar o serviço


de empresas especializadas. "A razão é mostrar o investimento que aquele grupo que organizou o evento fez, pois o espetáculo não tem só o papel de produzir rito", diz José


Guilherme Magnani. A questão da aparência é complexa, como explica Cauê Krüger. "No caso específico da festa de 15 anos, não se trata apenas da ‘fama’ individual, mas de todo o processo


de distinção associado, envolvendo os gastos, a beleza, o bom gosto, o número e o status dos convidados, entre outros fatores que atestariam o sucesso do evento como fenômeno coletivo, e


por extensão, de seu protagonista."