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Quatro dias depois de emocionar fãs curitibanos, David Gilmour, o lendário guitarrista de Pink Floyd, cantou e tocou para 60 mil argentinos no Hipódromo de San Isidro, na grande Buenos
Aires. Veja também Mas há quem defenda que era possível ouvi-lo com mais nitidez a 20 quilômetros dali, em um pequeno teatro do bairro portenho de Abasto, onde um sujeito de cocuruto calvo e
sobrancelhas peludas faz soar seus discos preferidos em alto-falantes holofônicos. Invenção do argentino Hugo Zuccarelli, a holofonia é um sistema capaz de gravar e reproduzir sons em três
dimensões, criando uma sensação espacial completa — e não apenas estereofônica de direita-esquerda. A novidade surgiu no final da década de 1970, antes de a norte-americana Dolby criar sua
tecnologia surround. Até hoje não são muitos os familiarizados com seu invento, embora o próprio David Gilmour tenha feito uso dele. Em 1982, quando britânicos e argentinos se enfrentavam na
Guerra das Malvinas, Zuccarelli imortalizava a holofonia em “The Final Cut”, um dos últimos discos do Pink Floyd. “Foi o maior erro da minha vida. Recebi por dez dias e trabalhei por um ano
e meio, tive de manter contrato de exclusividade, o produtor arruinou o disco e a gravadora não o promoveu como holofônico”, diz Zuccarelli. Mesmo assim, os ruídos de avião e a bomba
explodindo na faixa “Get your filthy hands off my desert” mostram que o efeito funcionou, apesar do fracasso comercial. Com Michael Jackson e o protótipo “Ringo” no estúdio Westlake, durante
a gravação de “I just can’t stop loving you”, faixa de “Bad”. Roger Waters, David Gilmour e Hugo Zuccarelli: antes de perder os cabelos e do fim de Pink Floyd. Zuccarelli hoje, retratado
pelo fotógrafo Elisandro Dalcin. Espetáculo de Zuccarelli coloca o público no escuro completo para ouvir discos importantes no sistema holofônico criado por ele. Série de eventos absurdos
fez Zuccarelli se afastar da indústria fonográfica e não ser reconhecido como o inventor da holofonia. Outra experiência traumática foi com o disco “Bad”, de Michael Jackson. A gravadora CBS
foi comprada pela Sony e Zuccarelli saiu prejudicado no contrato. Processou a empresa, mas acabou preso por desacato à autoridade. “O disco vendeu dois milhões de cópias com holofonia e eu
não vi um centavo. Paguei multa, limpei a rua por seis meses e fiquei preso 90 dias nos Estados Unidos”, diz, satisfeito por ter se recusado a vender o invento a Michael Jackson por US$ 100
mil. Paul McCartney também se encantou com a holofonia, mas, quando Zuccarelli descobriu que o engenheiro de som do ex-Beatle tentava roubar sua mina de ouro, a relação desandou. Há uma boa
dose de azar, rancor e quixotismo nessas histórias. Enquanto critica os todo-poderosos da indústria fonográfica e insinua as “estreitas ligações” entre a Sony e o narcotráfico, Hugo avalia
que há mais interesses políticos e econômicos no mundo da tecnologia e da ciência do que se pode supor. “Se você descobrir a cura para o câncer, por exemplo, te matam”. HOLOFONIA DÁ “VIDA” A
ARTISTAS MORTOS Em Buenos Aires, Zuccarelli promove audições coletivas de seus discos preferidos, sem distorções e sem a interferência da visão, já que as luzes do auditório são apagadas.
Trata-se de um irresistível oximoro: ouvir com absoluta clareza na mais profunda escuridão. Numa quinta-feira de dezembro, presenciei uma sessão de “Meddle” (1971), do Pink Floyd. Era como
se os instrumentos estivessem dentro da sala. Os latidos no blues “Seamus” e o coro da torcida do Liverpool ao final de “Fearless” ganharam novos contornos e dimensões. Sem contar o vento em
“One of these days”, mais transparente que nunca, e a beleza de se ouvir os 23 minutos de “Echoes” ressoando em definição inédita. “Há um componente visceral e emotivo que conecta as
pessoas com o artista quando se ouve em holofonia. Quando tocamos alguém que já morreu, como Luis Spinetta ou Freddie Mercury, o público se emociona como se pudesse escutá-lo em carne viva”,
diz. UM SOM LIMPO Diante dos tantos reveses da holofonia como sistema de gravação, Hugo Zuccarelli partiu para algo novo: os alto-falantes holofônicos. Ao contrário dos comuns, que separam
as frequências sonoras em graves, médios e agudos, os holofônicos possuem uma única membrana, o que permite controlar sua vibração e garantir o tão desejado silêncio após a nota. O resultado
é um som muito limpo e nítido, como se tem na vida real, livre de distorções. Para explicar o fenômeno ele gosta de ilustrá-lo. “Imagine encher de água um copo com um restinho de leite
achocolatado. Quando despejar a água, ela estará suja, porque o que sai do copo é mais do que entrou. O mesmo acontece com um alto-falante comum: você coloca Beatles para tocar, mas o que
sai é Beatles com leite achocolatado”.