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FERNANDA BASSETTE Por décadas, os cuidados com a SAÚDE BUCAL foram associados principalmente à prevenção de cáries e doenças gengivais. No entanto, a ciência tem tornado cada vez mais
evidente a importância do microbioma oral – um conjunto de microrganismos que habitam naturalmente a cavidade bucal. Estudos recentes têm demonstrado ligações entre desequilíbrios nesse
ecossistema microbiano e o desenvolvimento de cânceres de cabeça e pescoço, além de associações cada vez mais sólidas com o câncer colorretal. Entre as espécies microbianas que mais têm
chamado a atenção da comunidade científica está a _Fusobacterium nucleatum_, uma bactéria normalmente encontrada em baixos níveis na flora bucal de indivíduos saudáveis. Sua proliferação
descontrolada, no entanto, tem sido associada a DOENÇAS INFLAMATÓRIAS (como periodontite e outros problemas da cavidade bucal) e, mais recentemente, ao aumento do risco de desenvolver
tumores malignos em outras partes do corpo. A associação da _F. nucleatum_ com tumores despertou, há alguns anos, o interesse de pesquisadores do Hospital de Amor (antigo Hospital de Câncer
de Barretos), que iniciaram estudos sobre o papel do microrganismo no câncer colorretal. Mais recentemente, com apoio da FAPESP e de outras agências de fomento, o grupo expandiu as
investigações para entender sua possível atuação nos tumores de cabeça e pescoço. Descobriu que, nesses casos, a presença da bactéria está associada a melhor prognóstico e maior sobrevida.
Os resultados foram publicados no _Journal of Oral Microbiology_. Liderado pelo pesquisador Rui Manuel Reis, diretor científico do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital de Amor, o
estudo utilizou uma metodologia ultrassensível (o PCR digital) para detectar a presença da _F. nucleatum_ no tecido tumoral. Para isso, os pesquisadores analisaram 94 amostras de pacientes
com diferentes tipos de câncer de cabeça e pescoço tratados na instituição. “Realizamos a análise intratumoral a partir de material de arquivo parafinado [conservado em parafina], que foi
usado originalmente para diagnóstico desses pacientes”, explica Reis. “Com as metodologias mais tradicionais, seria difícil identificar a presença dessa bactéria com a mesma precisão em
material degradado, como o de parafina. No entanto, a técnica de PCR ultrassensível oferece uma alta confiabilidade e sensibilidade – até mesmo traços mínimos de DNA bacteriano podem ser
detectados”, destaca. O diferencial, segundo o pesquisador, foi detectar a bactéria dentro das células tumorais, um achado surpreendente. “Se analisarmos a saliva de uma pessoa, é provável
que encontremos essa bactéria, já que ela está normalmente presente na cavidade bucal e compõe o biofilme dental. O que não se esperava, porém, é que ela estivesse localizada dentro do
microambiente tumoral”, ressalta Reis. MELHOR PROGNÓSTICO Ao longo de aproximadamente cinco anos, os pesquisadores acompanharam os dados clínicos dos pacientes e constataram que a presença
da _F. nucleatum_ nos tumores estava associada a um prognóstico mais favorável. Ela foi identificada em 59,6% dos casos, com maior prevalência em tumores de orofaringe (62,1%) do que de
cavidade oral (53,6%). Pacientes cujos tumores apresentavam a bactéria tiveram sobrevida média de 60 meses, enquanto os demais viveram, em média, 36 meses – uma diferença significativa. “Não
esperávamos esse resultado, pois, em outros tipos de câncer, como o colorretal, a presença da bactéria costuma estar associada a maior agressividade e menor sobrevida”, comenta Reis. Apesar
do achado promissor, os pesquisadores ainda não compreendem completamente o motivo dessa associação positiva entre a presença da _F. nucleatum_ e o melhor prognóstico nos casos de câncer de
cabeça e pescoço. Uma das hipóteses é que a bactéria atue na regulação de fatores imunológicos, potencializando a resposta do sistema imune e, assim, tornando o tumor menos agressivo.
“Ainda não temos essa resposta, mas vamos aprofundar as investigações. Esse será o próximo passo”, diz o pesquisador. Outra linha de estudo buscará entender se a presença da _F. nucleatum_
nos tumores pode influenciar a resposta às terapias, o que abriria caminho para abordagens mais personalizadas no tratamento desses pacientes. Se confirmada, a bactéria poderá se tornar um
importante biomarcador para o prognóstico do câncer de cabeça e pescoço. “Mostramos que mesmo usando material antigo e em pequenas quantidades conseguimos detectar essa bactéria. Ou seja, se
no futuro ela for validada como biomarcador, já temos uma técnica eficaz para identificá-la no tecido tumoral”, destaca Reis. UMA POSSÍVEL ONCOBACTÉRIA? Na avaliação de Reis, a análise do
microbioma oral torna-se cada vez mais essencial na compreensão da oncologia moderna. “Mais do que apresentar um resultado definitivo, este é um estudo pioneiro, que chama a atenção para a
relevância dessa bactéria no contexto tumoral, e não apenas em doenças bucais”, afirmou Reis. Este é apenas o começo de uma nova linha de investigação. “Essa bactéria está emergindo como uma
importante moduladora no contexto do câncer e pode consolidar o uso do termo ‘oncobactéria’”, afirma. “Se for comprovado que ela participa da origem do câncer, antibióticos poderão até ser
considerados como terapia complementar à quimioterapia e à radioterapia.” Pesquisas futuras poderão revelar se a presença da _F. nucleatum_ está relacionada a diferentes respostas ao
tratamento, abrindo caminho para estratégias mais personalizadas. A partir desse conhecimento, será possível identificar com mais precisão quais terapias são potencialmente mais eficazes
para cada tipo de câncer, com base na presença ou ausência da bactéria. A DOENÇA NO BRASIL O câncer de cabeça e pescoço engloba uma série de tumores malignos que podem aparecer na boca,
orofaringe, laringe, nariz, seios nasais, nasofaringe, órbita ocular, pescoço e tireoide. De acordo com o Instituto Nacional de Câncer (Inca), os principais fatores de risco são tabagismo,
etilismo e infecção pelo vírus HPV, má higiene bucal e a desnutrição. Dados do Inca apontam que aproximadamente 80% dos casos diagnosticados no Brasil entre 2000 e 2017 foram identificados
em estágios avançados, o que reduz significativamente as chances de sucesso no tratamento. Esses números reforçam a importância de estratégias para o diagnóstico precoce e o desenvolvimento
de novas ferramentas prognósticas, como as apontadas neste estudo.