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ESPECIAL PARA O EM - O que há de drag na arte? O que seria, afinal, uma dragficação dos processos artísticos? Perguntas que surgem não como ponto de chegada, mas que a pesquisa curatorial é
campo de deslocamentos do nosso repertório complexo de musealidades. Visitar a exposição "A COISA DRAG", no Centro Cultural UFMG, foi mais que atravessar um espaço expositivo; foi
um mergulho num território de invenções estéticas, subjetivas e políticas. A partir do disparador de Renato Morcatti — “A drag me ensinou a ser artista” —, convoquei as vozes das artistes em
um jogo poético de pluralidades. Este texto se faz, portanto, exercício de polifonia, escuta, costura e colagem. A drag me ensina a pensar o corpo como ferramenta estética, mas também como
lugar de fissura e reinvenção. Ensina que a minúcia importa – que no detalhe, no traço, na escolha do tecido ou da sombra, mora uma potência criativa capaz de torcer o olhar do espectador. O
jogo é parte do método. A ironia é linguagem. O mau gosto, estratégia refinada. Dragficação é mais do que uma estética – é uma política da forma e do discurso. Está na sobreposição de
camadas, nas cores gritantes, no brilho que reflete e reflete-se, na composição de signos que operam tanto na construção da imagem quanto no colapso dos sentidos normativos. Mais do que
entreter, a drag ensina a performar a própria existência como resistência. Ensina a rir de si, a rir do mundo, a rir dos códigos que tentam nos fixar. Ensina que o risco do ridículo não é
fraqueza, mas potência. Que o excesso não é excesso — é amplificação do que sempre esteve ali, mas que foi ensinado a permanecer invisível. A drag é devir. Ferramenta de luta por direitos,
respeito e dignidade. Uma tecnologia de emancipação que opera nas frestas: nas brechas da sexualidade, nas rachaduras dos tabus, nos deslizamentos das normas. A drag me ensinou que o
respeito à diversidade, assim como a arte, não é luxo — é condição para existir. Montar-se é reivindicar o direito à fabulação do próprio corpo. O corpo vira tela, palco e manifesto. Ser
artista, sob a lente da drag, é habitar o campo da invenção radical. É criar para lidar com o impossível, com o buraco, com o real que muitas vezes nos sufoca. É fabricar saídas simbólicas,
estéticas e políticas para um mundo que constantemente tenta nos encaixotar. A drag me ensinou a não temer o espelho, nem os reflexos que ele produz. Me ensinou a não temer a própria imagem
– nem sua desconstrução. Aprendi que maquiar, pentear, costurar e planejar uma montação é, também, criar mundos. Cada cílio colado, cada glitter espalhado, cada salto calçado é uma decisão
poética. E, mais do que isso, é uma declaração de existência. Para corpos dissidentes — corpos com deficiência, corpos racializados, corpos não normativos —, a drag oferece uma outra
gramática de presença. Permite que outras poéticas se escrevam no corpo, rompendo com a narrativa do defeito, da falta, do erro. Aqui, o que era ausência vira potência. O que era desvio vira
trilha. E então vem a pergunta: por quê? E talvez seja exatamente essa pergunta que sustenta a potência da drag – porque ela não se responde, ela se performa. Se antes o desejo era
controlar a própria imagem, apagar aquilo que não cabia, hoje a drag ensina o contrário: assumir o desconforto, subverter o olhar, hackear os códigos de gênero, de beleza e de comportamento.
A drag oferece a possibilidade de ser outra – e, com isso, ser mais de si. Ela me ensinou que ser artista é, antes de tudo, desconfiar. Desconfiar dos corpos dados, dos gêneros impostos,
dos discursos prontos. Me ensinou a cair nas armadilhas – e, às vezes, fazer delas parte do espetáculo. Me ensinou que a liberdade estética e política se faz na cor, no brilho, na gargalhada
e no erro. A drag me ensinou que não há arte sem invenção de si. E que, talvez, a invenção mais radical seja a que fazemos do nosso próprio corpo. Porque ser artista, como ser drag, é uma
escolha diária de se refazer – e, no processo, refazer o mundo. Participaram da exposição que esteve em cartaz de 4 de abril a 16 de maio deste ano, no Centro Cultural UFMG: Adriano Basilio,
Amorim, André Venzon, Augusto Fonseca, Avilmar Maia, Caio Mateus, Camila Moreira, Carambola, Carolina Sanz, Cassandra Calabouço, Cavi Brandão, Cynthia Loeb, Dods Martinelli, Efe Godoy, Lili
Bertas, Elis Rockenbach, Sarita Themônia, Glau Glau, Hugo Houayek, Ítalo Carajá, Karine Mageste, Lai Borges, Lia Menna Barreto, Lorenzo Muratorio, Maria Carolina, Rafa Bqueer, Renato
Morcatti, Rodrigo Mogiz, Sandro Ka, Tatiana Blass, Téti Waldraff, Thix, Tolentino Ferraz e Victor Borém. *CAROLINA RUOSO É DOUTORA EM HISTÓRIA DA ARTE PELA UNIVERSIDADE PARIS 1
PANTHÉON-SORBONNE E PROFESSORA EM TEORIA, CRÍTICA E HISTÓRIA DA ARTE NA ESCOLA DE BELAS ARTES DA UFMG.