Filipi gradim: escafandrista do inconsciente - diário do rio de janeiro

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                                                  Se me pedem para eleger alguma mulher que se enquadre no rol das mulheres mais significativas da história, não consigo me decidir por uma em


especial. A tarefa me é difícil. Sobrevêm-me uma série de nomes à mente. Razão que me força, pelo menos, destacar três, em vez de uma. Dentro da família, elenco minha mãe e minha avó


materna. Dona Marcillia e dona Celeste. Dois tufões que, felizmente, passaram pela minha vida. Mas, fora do âmbito familiar, buscando alguma celebridade que se ajuste ao epíteto de “grande


mulher”, eu não penso duas vezes; e, então, o nome que salta imediatamente à boca é o da doutora Nise da Silveira. NISE DA SILVEIRA é grande pelo seu ser e mais ainda pelo seu fazer. Fui


apresentado primeiramente ao seu trabalho através de minha orientadora Maria Helena Lisboa, à época do mestrado em Filosofia. Nas aulas da UERJ, Maria Helena citava vez ou outra o nome de


Nise. Instigado pelo fazer de Nise, decidi procurar referências que adensassem ainda mais o meu interesse e foi aí que soube que Nise era leitora dos mesmos autores que eu estava


pesquisando, a saber, Artaud e Spinoza. Qual não foi minha alegria quando, depois, Maria Helena me convidou para uma roda de palestras na Casa das Palmeiras, espaço terapêutico situado em


Botafogo, fundado pela própria Nise, em que pude falar de Artaud para os “pacientes” da casa. Conforme disse certa feita Graciliano Ramos, Nise era aquela “pessoinha tímida”, aquela “senhora


pálida e magra, de olhos fixos, arregalados”, “acanhada”, que “tinha um sorriso doce”. No entanto, o que me atraiu em Nise foi sua força. Natural de Maceió, Nise nasceu em 15 de fevereiro


de 1905 e morreu no Rio de Janeiro, em 30 de outubro de 1999. Tendo sido criada em um ambiente culturalmente abastado (o pai, Faustino, era jornalista, professor e militante e a mãe Maria


Lídia era pianista), desde sempre se enfronhou em leituras. Mesmo tendo estudado em escola de freiras, desafiou o desejo do pai – que a queria pianista – e enveredou na Faculdade de


Medicina, em que se destacava como “a única mulher na Faculdade onde só estudavam homens.” Desde temporã já dava sinais de que sua vida seria talhada no espírito da rebeldia. A “pessoinha


tímida” guardava por dentro “uma natureza impetuosa”. Com a morte do pai, em 1927, Nise, aos 22 anos, partiu sozinha para o Rio de Janeiro. Como já era formada, já estava apta a trabalhar em


casas de saúde, mas não se rendeu. Preferiu, como estagiária, acompanhar o trabalho do professor Antônio Austregésilo, em uma clínica de neurologia. “Foi então que ocorreu a notícia que de


que ia haver um concurso para médico psiquiatra”, confessou Nise a Ferreira Gullar. Em 1933, Nise foi aprovada no concurso e passou a trabalhar no Hospital da Praia Vermelha no Serviço de


Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental. Em 1935, deflagrou-se a Intentona Comunista, liderada por Luiz Carlos Prestes, como resposta ao governo autoritário de Getúlio Vargas. A partir


daí iniciaram-se as prisões, sob aval do governo, com o propósito de sabotar o movimento comunista no Brasil. Nise, que era leitora de Trotsky, foi denunciada por uma enfermeira do Hospital


da Praia Vermelha e detida em 1936. Encarceram-na na ala 4 da Casa de Detenção, na rua Frei Caneca, compartilhando a cela com Olga Benário e outras mulheres militantes, durante 16 meses. Em


1944, o ministro da Justiça Macedo Soares lançou o que os militantes chamaram de _macedada_, isto é, uma estratégia para poder assumir o cargo que, em compensação, deveria contemplar e


assegurar a libertação dos presos políticos. Assim, Nise, que já estava livre, saiu da clandestinidade e reassumiu o hospital. Nise, no entanto, não retornou para a Praia Vermelha como


parecia óbvio. Ocupou, todavia, a função médica no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, local em que se estabeleceu e pôde desenvolver seu trabalho revolucionário.


Foi lá que ela começou “outra briga, a briga com a psiquiatria, que é a mais importante.” O litígio ocorrido entre Nise e a psiquiatria consistia basicamente em derrubar os “tratamentos e


medicamentos novos que antes não se usavam”.  Antônio Egas Moniz, apesar de ser um dos poucos lusófonos ganhadores do Nobel, logrou esse título com a infeliz invenção da lobotomia ou


leucotomia como forma de melhorar os sintomas das patologias psíquicas. Para Nise, Moniz foi um “miserável”, pois a lobotomia se efetivava com intervenções cirúrgicas que seccionam as vias


frontais do cérebro. A lobotomia, além do eletrochoque e o choque de insulina e de cardiazol, eram métodos invasivos e agressivos que provocavam convulsões no doente. Quando se viu na


situação de ter que apertar o botão de uma máquina de eletrochoque, Nise disse ao médico responsável pela sessão: “não aperto”. Conforme ela mesma disse: “aí começou a rebelde”. Como se


recusava a agredir os pacientes, o diretor geral do hospital encaminhou-a para a Terapêutica Ocupacional. Em resposta ao diretor, Nise foi taxativa: “eu quero ir pra lá. Mas vou fazer de lá


outra coisa.” É nesse aspecto que o magnetismo do ser de Nise, mesclado ao seu potente fazer, me atraíram ao ponto de minha admiração por essa mulher ter alcançado um nível tão alto. Nise


não foi apenas uma médica psiquiatra, mas sim uma _artista da psiquiatria_, pois é cabido ao artista a capacidade impressionante de invenção, quer dizer, de tornar o que não era algo que é,


e de tornar, o que é, outra coisa. _Tornar-se_ é propriamente a potência natural da arte e Nise contaminou a medicina com essa energia de transformação. Mas o que ela fez com sua rebeldia? A


transformação da psiquiatria no Brasil precisou passar pelo crivo da arte, embora Nise não se considerasse nem artista nem curadora. O que ela fez de artístico foi substituir a inércia ou


os trabalhos mecânicos executados pelos pacientes pela_criatividade_. Antes de sua chegada, “os doentes eram usados para varrer, limpar os vasos sanitários, servir os outros doentes”. Com a


intervenção, houve uma inovação que “consistiu exatamente em abrir para eles o caminho da expressão, da criatividade, da emoção de lidar com diferentes materiais de trabalho.” Do ponto de


vista do espaço de trabalho, Nise provocou uma mudança substancial na _ambiência _da psiquiatria, conforme revela Mario Pedrosa, em entrevista. Segundo ele, “o conceito de ambiência é hoje


primordial ao êxito de qualquer tratamento ocupacional. E quem primeiro no mundo científico soube exalçar a ideia foi a autoridade de Carl Gustav Jung.” Para criar essa ambiência


terapêutica, rompendo os grilhões da prática agressiva feita pela psiquiatria clássica, Nise se reportou aos seus mestres: Jung, Artaud, Spinoza e os animais. JUNG lhe revelou a dimensão


profunda da psique humana: “o inconsciente é como um oceano”, dizia Nise. Ele abarca “camadas mais obscuras da alma”, segundo Marcia Guimarães. “De vez em quando conseguimos pescar uma


imagem”, quer dizer, capturar sinais que emergem desse universo escuro e indecifrável. É por isso que, quem se dispõe a trabalhar com psiquiatria, segundo Nise, não deve ter medo do que


deflui latente no inconsciente e que se patenteia em imagem, e sim respeito. Mais ainda: deve _saber_ e _querer_ nadar no fluxo dessas águas imensas. Quem cuida de afecções psíquicas como a


esquizofrenia, a psicose e a afasia, além de médico, é escafandrista, pois exige-se de seu ofício a capacidade para pescar imagens. Dizia Nise: “eu preciso de pescadores, mas, sobretudo, de


mergulhadores. Gente com coragem e disposição para vestir o escafandro e mergulhar no fundo da psique. Lá é que estão os segredos do processo psicótico.” Jung lhe ensinou a lição: há que


mergulhar, cair de cabeça no mistério do outro, do desconhecido, para poder ter alcance ao que a clínica paradigmática só enxerga na superfície. Pelo fato de que as imagens do inconsciente


fluem feito peixes no oceano, é inadmissível que o processo terapêutico se dê em um ambiente rígido e repressor. ARTAUD ensinou a Nise que as imagens internas da psique revelam


“acontecimentos terríveis (…) avassalando o ser inteiro. Descarrilhamentos e metamorfoses do corpo; perda dos limites da própria personalidade; estreitamentos angustiantes ou ampliações


espantosas do espaço; caos, vazio.” Por isso, um confinamento no hospital é fatal para quem sofre de patologias psíquicas. Artaud denunciou os maus tratos do eletrochoque e tornou-se um


pioneiro na luta contra esse tipo de procedimento violento, afirmando-se como “uma espécie de patrono da antipsiquiatria”. Com SPINOZA, Nise aprendeu que o imaginário tem uma força mais


impressionante do que a racionalidade, porque ele apresenta “múltiplas formas”, “arcaísmos” e “símbolos condensadores de intensos afetos não raro contraditórios”. Dessa forma, “o imaginário


não seria redutível a termos racionais.” Por fim, com os ANIMAIS, seus mestres não-verbais e não-retóricos, Nise aprendeu que gatos e cães “podem desempenhar a função de co-terapeutas” e


que, na relação com os internados, eles ajudam na expressão sincera da afetividade, naquilo que ela chamou de _emoção de lidar_, substituindo o engessado termo “terapia ocupacional”. Foi


mesclando os saberes adquiridos com esses mestres humanos e não-humanos que Nise desenvolveu, no Engenho de Dentro, o _atelier_ de arte com os internos. A arte era a maneira não psiquiátrica


de tratar das doenças de fundo psíquico porque, como a psique tem uma estrutura, um esqueleto, “do mesmo modo que o corpo”, na verdade, uma “estrutura arquetípica, tomando mil e uma formas,


conforme as solicitações que recebe”, então é a arte, com sua liberdade formal, responsável por vazar essa estrutura complexa. Daí a necessidade de fomentar um tratamento visual, plástico,


pela pintura e pela escultura, que “envolve um processo de cura sem a verbalização”, enfraquecendo psicoses e afasias e dando ampla e irrestrita expressividade às vivências emocionais. Essa


foi a luta da grande mulher Nise.