Utilização de munição 'ponta oca': permitido ou proibido? – cartacapital


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Andre Luiz Hoffmann* A cena seguinte é verídica e, de certa forma, foi adaptada. Mas poderia acontecer em qualquer lugar do Brasil. Um indivíduo inicia o roubo de diversas pessoas, com uma


arma de brinquedo, em um ponto de ônibus. Um policial que estava de folga acompanha a ação e age, identificando-se e proferindo voz de prisão. Em uma fração de segundos, o indivíduo, que


estava de costas, movimenta o corpo. O policial, então, pensando se tratar de uma arma de verdade e prevendo uma reação, dispara um tiro acertando o baço do indivíduo. A munição, por ser do


estilo “ponta oca” ou “hollow point” em linguagem técnica, estilhaça no interior do corpo do indivíduo, atingindo diversos órgãos internos, inclusive a medula, fazendo com que ele nunca mais


ande. Apresentada esta cena, o objetivo principal não é questionar o preparo do policial ou se o individuo, em flagrante delito, mereceu a agressão recebida. A questão é outra e mais


profunda: a utilização desse tipo de munição do tipo “ponta oca” por parte das polícias no âmbito da Segurança Publica nacional. A munição de ponta oca é um projétil de expansão que ao


penetrar o corpo humano e atingir determinado tecido ou órgão se expande, sendo considerado extremamente eficiente ao neutralizar o alvo desejado, diminuindo a chance de o projétil


ricochetear ou atravessar o alvo e atingir outras pessoas. Ainda em alguns lugares é popularmente conhecida como pelo termo “dum dum”.  Esse tipo de munição é usado com certa frequência no


âmbito da Segurança Pública brasileira. Quando não é distribuído pelas instituições, são adquiridas de forma particular pelos próprios policiais, não havendo qualquer vedação em legislação


ordinária quanto ao seu comércio ou aquisição. O problema reside no fato de o Brasil ser signatário do Estatuto de Roma (Decreto n. 4388/02), que no seu artigo 8º, sobre crimes de guerra, no


inciso xix, veda a utilização por parte dos seus signatários, de “balas (sic) que se expandem ou achatam facilmente no interior do corpo humano, tais como balas de revestimento duro que não


cobre totalmente o interior ou possui incisões…”. Há ainda previsão legal quanto ao referido artigo no projeto do novo Código Penal, que está em votação no Congresso Nacional, vedando a


utilização desse material, no art. 538, cuja pena é de 5 a 8 anos. Mas ainda sim, a tipificação está no capítulo que trata dos Crimes de Guerra. Para discutir se a comercialização,


distribuição e utilização da referida munição no âmbito da Segurança Pública deveria ser permitida ou proibida é necessário entender a natureza jurídica do Estatuto de Roma (Decreto n.


4388/02) e seu papel no nosso ordenamento jurídico. O Estatuto de Roma, que institui o Tribunal Penal Internacional, em seu preâmbulo, expõe como razão do presente estatuto a quantidade de


“(…) vítimas de atrocidades inimagináveis que chocam profundamente a consciência da humanidade (…)”. E que essas atrocidades são consideradas “(…) crimes de uma tal gravidade  [que]


constituem uma ameaça à paz, à segurança e ao bem-estar da humanidade (…).” Os termos utilizados não foram colocados aleatoriamente, pois o referido tratado buscou enfatizar as milhões de


vítimas, que são torturadas e acabam pagando com a vida a guerra travada por seus governantes, que utilizam de armamentos a infligir maior dano. Em razão do que dispõe o referido Estatuto,


fica claro que se trata de norma internacional de Direitos Humanos. Estando o Estatuto de Roma inserido no ordenamento jurídico brasileiro, e sendo uma norma internacional de Direitos


Humanos, resta a duvida em que posição hierárquica colocá-lo em nossa legislação a ponto de ele ser respeitado, já que um dos argumentos para a utilização da referida munição no âmbito da


Segurança Pública é justamente não haver nenhuma disposição que proíba seu uso no Estatuto do Desarmamento (Lei n.10826/06). Nesse sentido, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal,


quaisquer tratados internacionais incorporados ao direito interno brasileiro, antes da Emenda Constitucional n. 45/2004, que tenham por conteúdo normas de Direitos Humanos, serão tratados


como normas supralegais, em uma posição intermediária, abaixo das normas de direito constitucional e acima da legislação ordinária. Após a Emenda Constitucional, a Constituição passou a


dispor que o Brasil encontra-se submetido à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, e por consequência, aos artigos do Estatuto de Roma. Portanto, a comercialização, distribuição e


utilização da referida munição no âmbito da Segurança Publica são uma grave violação aos Direitos Humanos. As instituições que permitem a seus servidores utilizar tais munições estão agindo


em flagrante ilegalidade, desperdiçando todas as inúmeras horas de ensino de Direitos Humanos ensinados nas suas academias preparatórias. As instituições voltadas à Segurança Pública


deveriam fazer a lição de casa e banir não somente a utilização, mas vedar a distribuição da referida munição em suas instituições, penalizando administrativamente o policial que as


utilizar. Andre Luiz Hoffmann é associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública