Ser negro: desafios para a reconstrução da identidade


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Para quem ainda não conhece, é bom ressaltar que o camaronês Achille Mbembe tornou-se uma referência acadêmica no estudo do pós-colonialismo. É um pensador sofisticado, erudito, leitor de


Frantz Fannon e Michel Foucault e pensador de grandes questões da História e da política africanas. É um acadêmico comprometido com seus temas e sua teoria está permeada por uma filosofia


política latente. Lecionou em universidades dos Estados Unidos e da África do Sul. A leitura de alguns capítulos do seu livro “Crítica da Razão Negra” foi para mim uma espécie de convite


para pensar as diferenças e a própria vida com base numa reflexão sobre o mundo contemporâneo a partir da experiência negra, lembrando que a visão do negro no mundo de hoje foi construída


pelo sistema escravista nos primórdios do colonialismo. Dessa forma, a definição de negro para o autor é uma categoria social que se confunde com os conceitos de escravo e de raça. Leia


também: 8 de março: Ao silêncio opressos nós respondemos com luta Enquanto construção social, negro é um conceito que designa a imagem de uma existência subalterna e de uma humanidade


castrada. Essa percepção econômica da questão racial tem início na fase mercantilista do capitalismo (quando o negro é transformado em mercadoria) e perdura no neoliberalismo. O termo


“negro” foi inventado para significar exclusão e em momento algum esteve dissociado da categoria de escravo. Para Mbembe, quando se observa o enquadramento histórico, percebe-se que os


conceitos foram fundidos. Nas palavras do autor, “negro” é aquele que vemos quando nada se vê, quando nada compreendemos e, sobretudo, quando nada queremos compreender. Essa invisibilidade


está no cerne do racismo, que, além de negar a humanidade do outro, se desenvolve como modelo legitimador da opressão e da exploração. Mais do que isso, exercício máximo do biopoder, o


racismo representa a escolha de quem deve ser eliminado, numa morte que pode ser tanto física quanto política ou simbólica. Uma vez que raça não existe enquanto fato natural físico,


antropológico ou genético, seria, na verdade, a redução do corpo e do ser vivo a uma questão de aparência, de pele ou de cor, desempenhando, assim, um papel fundamental no movimento que


transforma o ser humano em coisa, objeto ou mercadoria. Contraditório em sua essência, o conceito de raça apazigua com base no ódio, mantendo o terror e praticando aquilo que Mbembe chamou


de alterocídio, que consiste em “constituir o outro não como semelhante a si mesmo, mas como objeto intrinsecamente ameaçador, do qual é preciso proteger-se, desfazer-se ou destruir (quando


não se pode controlar)”. Negro seria um exemplo total do “ser-outro”, um símbolo de inferioridade que, de acordo com o ideal colonialista, devia ser amparado e protegido. A África, da mesma


forma, representaria um “não-lugar”, signo de atraso, de ausência de civilização e sem nenhuma contribuição à humanidade. Na visão eurocêntrica do colonizador, todas as contribuições


africanas, sua obra e conhecimento, assim como a luta de seus povos na diáspora e sua colaboração para o desenvolvimento histórico das Américas, por exemplo, foram não só desconsideradas,


mas absolutamente desconstruídas, ocultadas ou simplesmente apagadas. Somente quando a Europa deixou de ser o centro da civilização e da produção do saber é que se pôde formatar um


pensamento crítico em torno do negro. A escravidão no colonialismo, ou seja, a partir do século XVI, construiu o conceito de negro que vigora ainda hoje. A colônia é o lugar onde o negro


deixa de existir enquanto indivíduo, isto é, torna-se invisível. Além de virar mercadoria, o negro sofre com toda carga de descaracterização de sua cultura. É justamente o conceito


eurocêntrico de civilização que determina a construção da inferioridade negra, fazendo com que o elemento negro passe a ser visto como objeto de perigo que, no limite, não pode coexistir.


Disso decorrem as políticas de segregação, como o apartheid, e os mitos de superioridade racial. Por outro lado, algumas elites se apropriaram da ideologia da mestiçagem para negar e


desvalorizar a questão racial, haja vista o exemplo brasileiro com seu célebre mito da democracia racial. Por ter a cor da noite, não foi difícil associar o negro à escuridão, às sombras e à


invisibilidade. Na lógica colonialista, só existe um negro se houver um senhor. Essa relação senhor/escravo impõe ao negro um modo de se ver e de ser visto: negro é aquele que ninguém


desejaria ser, um sinônimo de subalternidade, uma maldição. O desafio de se reconstruir uma identidade negra passa necessariamente pela superação do ideário escravista. Mbembe aponta para um


futuro livre do peso da “raça” e, por conseguinte, do ressentimento, mas isso só seria possível por meio da justiça, da restituição e da reparação. Essas e outras questões colocadas por


Mbembe têm me auxiliado a lançar esse conceito de negro, construído socialmente, para o interior das religiões de matrizes africanas, profundamente marcadas pelo modo colonialista de viver e


reproduzir as relações de poder. Há uma série de desconstruções necessárias não só para compreender, mas sobretudo para vivenciar o candomblé em sua essência. Muitos terreiros reproduzem


não só a escravidão, mas também o racismo. O desafio de estudar o candomblé em metrópoles como São Paulo esbarra em questões muito semelhantes àquelas levantadas por Mbembe. Fugir dos


estereótipos e estigmas ainda requer muita habilidade tanto do pesquisador quanto do sacerdote. A rigor, o viés científico e/ou filosófico nunca considerou a produção de saberes no interior


das comunidades, muito menos um modo de ver e viver o mundo pautado em valores africanos preservados e ressignificados no âmbito dos terreiros. Nem de longe, cogita-se a possibilidade de


admitir que os costumes e a própria civilização brasileira são profundamente marcadas por uma cultura em diáspora e predominantemente religiosa. As discussões levantadas por Mbembe abrem


caminho para que os oprimidos, minorias e desvalidos de toda sorte possam ter suas histórias contadas de outras perspectivas. Mostram que é tempo de dar vez aos que ainda não tiveram voz.